"No dia em que um homem engolir uma galinha inteira, viva, sem tirar as penas, o sangue, as vísceras; no dia em que um parto não sangrar e a água não verter sobre a Terra, neste dia eu deixo de cortar para o orixá."
Pai Cido
Sacrifício não é sinônimo de assassinato, relacionado que está a rituais sagrados, visando, no candomblé, ampliar, acumular e distribuir a força vital e sagrada que é o axé. Boa parte das religiões utilizava sacrifícios em seus rituais, mas na maioria das vezes o sentido era expiatório, não se aplicando essa noção ao candomblé por um motivo aparentemente simples: no Candomblé não existe pecado, portanto não há o que expiar.
Entre os cristãos, por exemplo, a extinção do sacrifício (em termos gerais) justifica-se pela morte de Jesus Cristo, que teria morrido para salvar a humanidade no mais importante sacrifício que o mundo assistiu. Ocorre que Jesus morreu pelos cristãos, e não pelo Candomblé, e isso significa, na realidade, que os ritos processados em outra doutrina religiosa não fazem nenhum sentido para os orixás; da mesma forma que os rituais do Candomblé fogem à compreensão da Igreja católica. Em outras, palavras, o Candomblé só se explica pelo Candomblé, não adiantando recorrer à bíblia para explicar e muito menos condenar as práticas da religião dos orixás.
O sangue é de importância vital para os orixás, pois está ligado á concepção, à fertilidade, ao nascimento e a todas as etapas da vida. Sem haver sangue não há axé, ninguém nasce sem sangue. Quando deixar de haver sacrifícios, o Candomblé deixará de existir.
Não se derrama o sangue dos animais por maldade, por crueldade, muito menos para fazer mal a alguém. O sacrifício é a condição para que a vida continue, e não apenas no Candomblé. Todos se alimentam, seja de carne, seja de vegetal, e um boi só pode ser comido em bifes, ou seja, em partes e depois de morto; uma alface, ao ser desconectada de sua raiz, também é morta. Porque não se pode atribuir um significado religioso a um ato essencial para a sobrevivência humana? Será mesmo que a condenação do Candomblé se deve ao sacrifício? Não seria essa uma forma de a sociedade camuflar preconceitos mais profundos?
O ritual macabro não está nos Candomblés e sim nos matadouros, onde os animais são submetidos a inúmeras crueldades e morrem com muito sofrimento. Imaginem um animal ainda vivo tendo a sua pele arrancada: isso é um exemplo do que ocorre nos matadouros. É por isso que a carne que será consumida pelos iniciados deve ser sacralizada por meio de rituais específicos; a carne de um animal que morreu com sofrimento não faz bem a ninguém. Os judeus e mulçumanos, por exemplo, só consomem carnes de animais abatidos de acordo com seus preceitos. Por que o Candomblé não pode fazer o mesmo?
É um absurdo acusar o Candomblé de fazer sacrifícios humanos, como têm feito certas igrejas. O Candomblé não é uma religião hipócrita e assume o que faz. São sacrificados, sim, bois, bodes, galinhas, patos e muitos outros animais, que depois servem de alimento à comunidade, mas nunca seres humanos, pois o orixá vive no homem e através do homem.
Todo homem sacrifica, não necessariamente num sentido religioso, e mata para sobreviver. Qual mal pode haver em oferecer aos deuses as partes que os homens não consomem?
Lembrem-se de que Jesus foi condenado à morte por pessoas que viriam a santificá-lo depois, fazendo sinal-da-cruz, adorando a sua imagem ensangüentada. Pois que fique bem claro: não somos contra o homem Jesus, mas contra os homens que mataram Jesus. Nós não matamos nossos orixás, nós os amamos com todos os seus defeitos e qualidades.
Para o Candomblé, tudo que a natureza produz é sangue, pois o que define o sangue é a força que detém, ou seja, o axé, e um sacrifício requer a utilização de vários tipos de sangue, vindos das mais variadas fontes da natureza, atribuindo vida e sentido ao orixá, aos homens e à própria existência.
[Notas Bibliográficas e Comentários]
Transcrito do Livro “Candomblé – A panela do segredo”, de Pai Cido de Òsun Eyin com a colaboração de Rodnei William Eugênio, publicado pela Editora ARX, pp. 275 a 277.
Axé a todos os nossos irmãos!
Deus é tudo acima de todas as coisas!
Olorum Colofé!