As Iá Mi Oxorongá são as nossas mães primeiras,
raízes primordiais da estirpe humana, são feiticeiras.
São velhas mães-feiticeiras as nossas mães ancestrais.
As Iá Mi são o princípio de tudo, do bem e do mal.
São vida e morte ao mesmo tempo, são feiticeiras.
São as temidas ajés, mulheres impiedosas.
As Oxorongá já viveram tudo o que se tem para viver.
As Iá Mi conhecem as fórmulas de manipulação da vida,
para o bem e para o mal, no começo e no fim.
Não se escapa ileso do ódio de Iá Mi Oxorongá.
O poder do seu feitiço é grande, é terrível.
Tão destruidor quanto é construtor e positivo o axé,
que é a força poderosa e benfazeja dos orixás,
única arma do homem na luta para fugir de Oxorongá.
Um dia as Iá Mi vieram para a Terra e foram morar nas árvores.
As Iá Mi fizeram sua primeira residência na árvore do orobô.
Se Iá Mi está na árvore do orobô e pensa em alguém,
este alguém terá felicidade, será justo e viverá muito na Terra.
As Iá Mi Oxorongá fizeram sua segunda morada
na copa da árvore chamada araticuna-da-areia.
Se Iá Mi está na copa da araticuna-da-areia e pensa em alguém,
tudo aquilo de que essa pessoa gosta será destruído.
As Iá Mi fizeram sua terceira casa nos galhos do baobá.
Se Iá Mi está no baobá e pensa em alguém,
tudo o que é do agrado dessa pessoa lhe será conferido.
As Iá Mi fizeram sua quarta parada
no pé de Iroco, a gameleira-branca.
Se Iá Mi está no pé de Iroco e pensa em alguém,
essa pessoa sofrerá acidentes e não terá como escapar.
As Iá Mi fizeram sua quinta residência nos galhos do pé de Apaocá.
Se Iá Mi está nos galhos do Apaocá e pensa em alguém,
rapidamente essa pessoa será morta.
As Iá Mi fizeram sua sexta residência na cajazeira.
Se Iá Mi está na cajazeira e pensa em alguém,
tudo o que ela quiser poderá fazer,
pode trazer a felicidade ou a infelicidade.
As Iá Mi fizeram sua sétima moradia na figueira.
Se Iá Mi está na figueira e alguém lhe suplica o perdão,
essa pessoa será perdoada pela Iá Mi.
Mas todas as coisas que as Iá Mi quiserem fazer,
se elas estiverem na copa da cajazeira,
elas o farão,
porque na cajazeira é onde as Iá Mi conseguem seu poder.
Lá é sua principal casa, onde adquirem seu grande poder.
Podem mesmo ir rapidamente ao Além, se quiserem,
quando estão nos galhos da cajazeira.
Porque é dessa árvore que vem o poder das Iá Mi
e não é qualquer pessoa
que pode manter-se em cima da cajazeira.
Elas vieram para a Terra.
Eram duzentas e uma e cada qual tinha o seu pássaro.
Eram as mulheres-pássaros, donas do eié,
eram as mulheres-eleié, as donas do eié.
Quando chegaram, foram direto para a cidade de Otá
e os babalaôs mandaram preparar uma cabaça para cada uma.
Elas escolheram sua ialodê, sua sacerdotisa.
Foi a ialodê quem deu a cada eleié
uma cabaça para guardar seu pássaro.
Então, cada Iá Mi partiu para sua casa
com seu pássaro fechado na cabaça
e lá cada uma guardou secretamente sua cabaça
até o momento de enviar o pássaro para alguma missão.
Quando Iá Mi abre a cabaça,
o pássaro vai, seja aonde for,
aos quatro cantos do mundo e executa sua missão.
Se é pra matar, ele mata.
Se é pra trazer os intestinos de alguém,
ele espreita a pessoa marcada para abrir seu ventre
e colher seus intestinos.
Se é para impedir uma gravidez,
ele retira o feto do ventre da mãe.
Ele faz o que lhe for ordenado e volta para sua cabaça.
Iá Mi, então, recoloca a cabaça em seu lugar secreto.
Mas, se a pessoa possui um encantamento contra a feiticeira,
ela deve dizer a seguinte fórmula:
“Que aquela que vos enviou para me pegar, não me pegue”.
Assim, por mais que tente, o pássaro não poderá executar sua tarefa.
Sua dona terá de ir em busca do auxílio das outras Iá Mi.
Ela vai à assembléia e relata seu problema.
As ajés, as feiticeiras, devem trabalhar com ela,
porque não podem realizar sua tarefa sozinhas.
Então, Iá Mi leva um pouco do sangue da pessoa que quer prejudicar.
Todas as outras Iá Mi o põem na boca e o bebem.
Depois, elas se separam e não deixam dormir a vítima.
O pássaro é capaz de carregar um chicote,
pegar um cacete,
tornar-se alma do outro mundo,
e até mesmo pode ter o aspecto de um orixá;
tudo para aterrorizar a pessoa à qual foi enviado.
Assim são as Iá Mi Oxorongá.
Esta é a sua história.
[Notas bibliográficas e comentários]
Transcrito do livro Mitologia dos Orixás de Reginaldo Prandi publicado pela Cia das Letras, págs 348-351. Originalmente retirado de Pierre Verger, 1992, pp. 38-40. As Iá Mi são feiticeiras, não são orixás. A inclusão de seus mitos neste volume justifica-se por sua importância na disputa entre o poder construtivo dos orixás, o axé, e o poder destrutivo delas. Ialodê, em algumas cidades e aldeias iorubanas, é quem organiza o trabalho comunitário das mulheres. No candomblé é um cargo feminino para o provimento do terreiro e organização de festas. O culto às Iá Mi no Brasil está restrito a alguns terreiros mais antigos, cantando-se para elas no rito do Padê, e a outros terreiros africanizados. O fato de que, no Brasil, a idéia de feitiço deixou de ter, junto ao povo-de-santo, as interdições morais existentes na África pode ter contribuído para o enfraquecimento do culto das temidas feiticeiras.
Axé [àse] – força mística dos orixás; força vital que transforma o mundo.
Orobô [orógbó] – noz-de-cola amarga, falso obi (Garcinia gnetoides, guttiferae), fruto usado no culto de Xangô.
Eié [eye] – pássaro.
Eleié [ele eye] – literalmente, o dono ou a dona do pássaro; epíteto usado para referir-se às Iá Mi.
Ialodê [iyálóde] – encarregada de organizar o trabalho comunitário das mulheres da aldeia.
Ajé [Àjé] – feiticeira.
Axé a todos os nossos irmãos!
Deus é tudo acima de todas as coisas!
Olorum Colofé!
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