quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Erinlé é acusado de roubar cabras e ovelhas



Em Ijebu viveu um grande caçador chamado Erinlé.
Ele era generoso e imbatível na caça.
Por isso era admirado pela maioria da população.
Mas havia alguns moradores que invejavam Erinlé
e que conspiravam para arruinar o caçador,
famoso pela caça de elefantes e de outros animais.
Decidiram roubar cabras e ovelhas do rei e culpar Erinlé.
O rei intimou quem soubesse algo sobre o roubo a dizê-lo.
Os conspiradores foram até o rei fazer a acusação.
Disseram que Erinlé roubava cabras e ovelhas,
escondia as peles em casa e dizia
que as carnes eram de animais selvagens.
O rei intimou Erinlé.
Houve um julgamento.
Os inimigos de Erinlé testemunharam contra ele.
O rei quis ouvir a defesa de Erinlé.
Houve testemunhos a favor dele.
Diante do impasse, o rei ponderou que Erinlé
parecia ser de fato um grande caçador,
mas teria que provar sua inocência.
Erinlé disse:
“Minha caça falará por mim.
Minha caça será minha testemunha”.
Erinlé foi até sua casa e trouxe coisas para o rei.
Erinlé trouxe as peles dos animais selvagens que havia caçado.
presas de elefantes e de javalis,
peles de gamos, veados e antílopes.
Então o réu reconheceu a inocência de Erinlé
e ordenou que ninguém mais tocasse no assunto.
Erinlé foi para casa, inocentado porém triste.
Erinlé nunca se conformou com a acusação que sofrera.
Erinlé pensava e não entendia a razão de tentarem desgraçá-lo.
Não quis mais caçar nem comer com os seus.
Em momentos de desespero fustigava o próprio corpo
com a sua chibata de cavaleiro, seu bilala.
Imaginava que seria acusado novamente
caso acontecesse outro roubo de animais.
Erinlé perdera completamente a vontade de caçar.
Então entrou na água de um rio próximo
e partiu de Ijebu, onde nunca mais foi visto.
E se tornou o orixá do rio.
Erinlé agora é o rio.
O rio Erinlé é Erinlé,
o orixá caçador que já não caça.

[Notas Bibliográficas e Comentários]


Transcrito do Livro Mitologia dos Orixás de Reginaldo Prandi, publicado pela Cia das Letras, págs 131-2. Originalmente encontrado em Harold Courlandes, 1973, pp. 163-5.



Bilala [bílàlá] – chibata usada por Otim e Oxóssi.

Axé a todos os nossos irmãos!
Deus é tudo acima de todas as coisas!
Olorum Colofé!

Iá Mi são enganadas por Orunmilá


Um dia Orunmilá quis ir a Otá para descobrir os segredos das Iá Mi.
Ele procurou os babalaôs e consultou Ifá.
Orunmilá podia ir, disseram, mas tinha que fazer uma oferenda.
Assim, Orunmilá preparou uma peça de tecido branco para oferecer
e mais uma cabeça de serpente e um pombo branco,
ao que juntou quatro obis brancos e quatro obis vermelhos
e também azeite, pó branco de efum, pó vermelho de ossum
e uma cabaça.
Orunmilá deu tudo isso aos babalaôs e alegrou-se:
agora podia ir à cidade das Iá Mi.

Quando Orunmilá chegou ao mercado de Otá,
as feiticeiras se regozijaram: “A comida chegou”, disseram.
Porque elas queriam matar e comer Orunmilá.
Mas Exu, que faz o bem e o mal e transforma-se rapidamente,
veio em pessoa advertir as bruxas Iá Mi:
Orunmilá tinha um pássara mais poderoso do que os delas todas.
Dessa forma, as Iá Mi tiveram de levar seus pássaros
e submetê-los a Orunmilá.
Mas elas não queriam deixar de lutar.
As Iá Mi lançavam mau-olhado no corpo de Orunmilá.
Elas queriam matá-lo
porque Orunmilá conhecer todos os segredos delas.
Então Orunmilá consultou novamente Ifá e fez novas oferendas.
Preparou uma buchada, pegou um frango de penas arrepiadas
e também ecôs e búzios.
Os babalaôs de Orunmilá foram consultar Ifá.
Então eles chamaram as Iá Mi
e deram aquilo tudo para elas comerem.
E elas não puderam mais ver  Orunmilá nem pegá-lo.
Orunmilá as enganara.
Como eram ajés, isto é, feiticeiras,
as Iá Mi não podiam comer buchada,
pois tripa é seu euó, seu tabu,
e como frango arrepiado não pode voar para o telhado da casa,
as Iá Mi não podiam matá-lo.
Foi assim que Orunmilá enganou as Iá Mi Oxorongá naquele dia
e descobriu quase todos os segredos delas.


[Notas Bibliográficas e Comentários]
Transcrito do Livro Mitologia dos Orixás de Reginaldo Prandi, publicado pela Cia das Letras, págs. 351-352. Originalmente encontrado em Pierre Verger, 1992, pp. 41-3.


Ajé [Àjé] – feiticeira.
Euó [ewò] – interdição religiosa; tabu; quizila.
Ecô [eko] – bolinho de amido de milho branco ou amarelo embrulhado em folha de bananeira.
Efum [efun] – giz, pó branco.
Ossum [osun] – pó vermelho usado para pintar o corpo em certas cerimônias; giz.
Obi [obì] – noz-de-cola, fruto africano aclimatado no Brasil (Cola acuminata, Streculiacea), indispensável nos ritos do Candomblé; substituído em Cuba pelo coco.


Axé a todos os nossos irmãos!
Deus é tudo acima de todas as coisas!
Olorum Colofé!

sábado, 20 de agosto de 2011

Jardim das Folhas Sagradas - O candomblé no cinema

Um filme sobre a espiritualidade, ecologia e conflitos do cotidiano urbano. Jardim das Folhas Sagradas oferece o debate sobre bissexualidade, intolerância religiosa e preconceitos étnicos, ao mesmo tempo em que expõe nuances do Candomblé e discute a degradação das áreas verdes nas cidades vitimadas pela especulação imobiliária.

É o resultado de um amplo projeto de pesquisa a respeito da religião afro-brasileira. Parte de um conceito analítico, até crítico sobre o Candomblé, e revela detalhes de uma crença pouco conhecida além dos círculos da sua existência. É nítida a espiritualidade dos personagens enquanto vivem dramas cotidianos. Aborda assuntos expostos desde em O Amuleto de Ogum e Tenda dos Milagres (ambos de Nelson Pereira dos Santos) ao filme Barravento, de Glauber Rocha.


Jardim das Folhas Sagradas traz no elenco excelentes atores baianos, desde o conhecido João Miguel (Estômago (2007) e Melhor Ator no Festival do Rio 2005 por Cinema, Aspirinas e Urubus (2005)), aos estreantes no cinema nacional, mas de longa carreira no teatro baiano, a exemplo de Antônio Godi - que encarna o protagonista da trama -, Evelin Buccheger, Sérgio Guedes e atores do Bando de Teatro Olodum. A surpresa fica por conta da participação especial da cantora Mariene de Castro, debutando enquanto atriz.

Além de ter um ator negro enquanto protagonista, Jardim surpreende por abordar um negro como um profissional bem sucedido. O ator Antônio Godi vive o bancário Bonfim, casado com Ângela (Evelin Buchegger) - uma mulher branca e de crença evangélica. Bonfim conserva uma relação homossexual com Castro (João Miguel), mas depois de um acontecimento trágico, bombardeado por sonhos místicos e com a vida de cabeça pra baixo, resolve cumprir uma missão recebida no Candomblé: fundar o terreiro Kosí Euê Kosí Orixá, que em Iorubá significa “sem folha não há orixá”.

O local é afastado da cidade e preserva o contato entre natureza e religião. Porém essa segmentação ecológica enfrenta resistência de setores do próprio Candomblé, já que a maioria das sessões é realizada com o sacrifício de animais, aspecto determinante para que o terreiro permaneça protegido pelos orixás, e cuja desobediência pode trazer consequências funestas. Uma tradição que o moderno terreiro de Bonfim também pretende enfrentar.


Por meio de diversos conflitos, Bonfim experimentará o sabor do amor e do desprezo, da amizade e da traição, compartilhando o aprendizado da força e sabedoria ancestrais do Candomblé para a superação dos obstáculos, numa Salvador marcada pela expansão e especulação imobiliárias.


Jardim das Folhas Sagradas é o primeiro longa-metragem da carreira de Pola Ribeiro, baiano de 55 anos que sempre atuou nas artes visuais. Nele, a discussão social abordada, segundo o diretor de cinema Bernard Attal, “é comum ao negro de Salvador e de Paris”. O filme teve premiére nacional durante o Festival do Rio 2010 e estreia comercial prevista para maio de 2011 em Salvador e Luanda (Angola) simultaneamente.

Para baixar este release clique aqui. Baixe também o PDF com informações do filme em português, inglês e francês. Acompanhe a produção do filme nas redes sociais: Facebook, Twitter, Orkut, Youtube e Blog.

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Olorum Colofé!

Nelson Mandela - Um pensamento


“… a cela é um lugar ideal para aprendermos a nos conhecer, para se vasculhar realística e regularmente os processos da mente e dos sentimentos. Ao avaliarmos nosso progresso como indivíduos, tendemos a nos concentrar em fatores externos, como posição social, influência e popularidade, riqueza e nível de instrução. Certamente são dados importantes para se medir o sucesso nas questões materiais, e é perfeitamente compreensível que tantas pessoas se esforcem tanto para obter todos eles. Mas os fatores internos são ainda mais decisivos no julgamento do nosso desenvolvimento como seres humanos. Honestidade, sinceridade, simplicidade, humildade, generosidade pura, ausência de vaidade, disposição para ajudar os outros — qualidades facilmente alcançáveis por todo indivíduo — são os fundamentos da vida espiritual. O desenvolvimento de questões dessa natureza é inconcebível sem uma séria introspecção, sem o conhecimento de nós mesmos, de nossas fraquezas e nossos erros. Pelo menos – ainda que seja a única vantagem – a cela de uma prisão nos dá a oportunidade de examinarmos diariamente toda a nossa conduta, de superarmos o mal e desenvolvermos o que há de bom em nós. A meditação diária, de uns 15 minutos antes de nos levantarmos, é muito produtiva nesse aspecto. A princípio, pode ser difícil identificar os aspectos negativos em sua vida, mas a décima tentativa pode trazer valiosas recompensas. Não se esqueça de que os santos são pecadores que continuam tentando.”

De uma carta de Nelson Mandela escrita na prisão para sua então esposa, Winnie, datada de 1º de fevereiro de 1975.


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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O extermínio negro direto e indireto como parte do projeto de poder no Brasil

 
Por Douglas Belchior*
 
Muito se diz sobre a prioridade em diminuir a miséria e as diferenças sociais no Brasil. No entanto, há pouca reflexão sobre o quanto a miséria e a marginalização da maior parte da população são fundamentais para o projeto de poder das elites racistas do país.
 
A superação da pobreza depende, fundamentalmente, do rompimento com os interesses do grande Capital, no Brasil representado por latifundiários e empresários do agronegócio; por banqueiros, especuladores financeiros e empresas multinacionais de diversas áreas. Somente uma mudança estrutural nas relações políticas, sociais, raciais e econômicas será capaz de eliminar as desigualdades em nosso país.
 
Há sim uma histórica e permanente divisão de classes composta por um lado pelos personagens já citados acima, por outro pela massa empobrecida, trabalhadores e desempregados em todos os níveis. Mas, chamamos a atenção em particular para situação da população negra no Brasil. O racismo tem ditado a dinâmica das relações sociais desde a falível abolição da escravidão, há 123 anos.
A população pobre que se declara parda ou preta é quase o triplo da que se declara branca, de acordo com dados do Censo 2010.
 
Em maio de 2011 o governo federal definiu para o limite da miséria - renda de até R$ 70 por mês - e divulgou que 16,2 de pessoas se encaixam nele. Uma semana depois, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou a cor ou raça declarada deste grupo de pessoas. De acordo com os dados, 4,2 milhões dos brasileiros pobres se declararam brancos e 11,5 milhões pardos ou pretos - isso significa que o número de pobres negros é 2,7 vezes o número de pobres brancos.
 
Não bastassem as mazelas sociais que afligem historicamente a população negra por meio do subemprego, do desemprego, da falta de moradia, dos serviços precários de saúde e educação, da falta de oportunidades e do desumano e permanente preconceito e discriminação racial em todo e qualquer ambiente social, percebe-se a vigência de um projeto de extermínio da população negra, por parte do Estado brasileiro.
O Estado e suas policias mantém uma atuação coercitiva, preconceituosa e violenta dirigida a população negra. Desrespeito, agressões, espancamentos, torturas e assassinatos são práticas comuns destas instituições.
 
Em julho de 2009 a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, UNICEF e o Observatório de Favelas divulgam resultados de sua pesquisa, e os dados são estarrecedores: 33,5 mil jovens serão executados no Brasil no curto período de 2006 a 2012. Os estudos apontam que os jovens negros têm risco quase três vezes maior de serem executados em comparação aos brancos.
 
Conforme o “Mapa da Violência 2011: os jovens do Brasil”, em 2002, em cada grupo de 100 mil negros, 30 foram assassinados. Esse número saltou para 33,6 em 2008; enquanto entre os brancos, o número de mortos por homicídio, que era de 20,6 por 100 mil, caiu para 15,9. Em 2002, morriam proporcionalmente 46% mais negros que brancos. Esse percentual cresce de forma preocupante uma vez que salta de 67% para 103%.
 
De acordo com o mesmo Mapa, constata-se que o grau de vitimização da população negra é alarmante: 103,4% maiores as chances de morrer uma pessoa negra, se comparada a uma branca; sendo 127,6% a probabilidade de morte de um jovem negro [de 15 a 25 anos] à de um branco da mesma faixa etária.
Cada vez mais explícitos, os casos de violência policial furam o bloqueio da grande mídia, causando comoção e provocando a atenção da opinião pública a cerca desta realidade. O último grave acontecimento foi a do desaparecimento do menino negro Juan Moraes, morto aos 11 anos pela polícia do Rio de Janeiro. O genocídio negro já é admitido por parte imprensa nacional, a exemplo do jornal Correio Braziliense, que após cruzar dados de mortalidade por força policial do Ministério da Saúde e das ocorrências registradas nas secretarias de Segurança Pública do Rio de Janeiro e São Paulo, revelou que a uma pessoa é morta no Brasil pela polícia a cada cinco horas e que 141 assassinatos são realizados por agentes do Estado a cada mês.
 
Ainda segundo o estudo, Rio de Janeiro e São Paulo concentram 80% dos assassinatos cometidos por policiais no Brasil. Em 2009, 1.693 pessoas foram mortas por policiais. Em 2010, esse número aumentou: foram 1.791. Os números mostram que 70% dos mortos são jovens de 15 a 29 anos.
 
Soma-se a esse quadro, a ação genocida indiretamente promovida através do encarceramento em massa de jovens e adultos em internatos, fundações, institutos de recuperação, cadeias, penitenciárias e presídios. Espaços onde a tortura e o completo desrespeito aos direitos humanos são rotina. A subserviência e a aliança entre grupos políticos e empresários junto ao tráfico internacional de drogas e o consequente mercado ao mesmo tempo fascina pelo “ganho” fácil, coopta e vitimiza a juventude, em especial a população negra.
 
O complemento à política genocida deste estado vê-se a olhos nus nas áreas da Educação e Saúde. A Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) divulgada no final de 2010 demonstra que o Brasil ainda possui 14 milhões de analfabetos. Apenas 23% dos brasileiros maiores de 25 anos concluíram o ensino médio.
 
Outro estudo, (Laeser/IE-UFRJ), aponta que a taxa de analfabetismo entre os negros é maior do que o dobro se comparada a da população branca. Dos 6,8 milhões de analfabetos que frequentaram a escola entre 2009 e 2001, 71,6% eram pretos e pardos.
 
Na Saúde, esse mesmo estudo (Laeser/IE-UFRJ) revela que existe um abismo entre brancos e negros no acesso à saúde pública e que essa desigualdade perpassa o Sistema Único de Saúde (SUS), onde, por exemplo, em relação ao Pré-Natal, 71% das mães de filhos brancos fizeram mais de sete consultas; o número de mães de filhos negros que passaram pelos mesmos exames é 28,6% inferior. No geral, a população negra é a mais necessitada do SUS e também aquela que tem mais dificuldade ao acesso.
 
Pesquisas e estudos demonstram no campo da formalidade o que vivenciamos no dia a dia de nossas comunidades. Presenciamos um momento de ofensiva de opressões por parte do Estado Brasileiro que por sua vez, enxerga na população empobrecida, em especial na juventude negra, seu principal inimigo. Aos movimentos populares cabe a permanente denuncia e a teimosia em organizar a população para a resistência e ação.
 
A UNEafro-Brasil soma-se a esse esforço no cotidiano de sua atuação nos Cursinhos Comunitários e nos Núcleos de Cultura. Assumimos o desafio de, devagar e sempre, fomentar uma nova mentalidade, crítica, questionadora e sedenta por transformações, elementos tão necessários para a organização da classe trabalhadora e para a nossa vitória.
 
Douglas Belchior
Professor de História
Membro do Conselho Geral da UNEafro-Brasil
 
Axé a todos os nossos irmãos!
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