domingo, 31 de julho de 2011

Oxum mata o caçador e transforma-se num peixe


Oxum mora perto de lagoa, perto da ossá.
Todos os dias Oxum ia à lagoa se banhar;
todos os dias ia polir suas pulseiras, seus indés;
todos os dias lavava na lagoa seu ida.
Oxum caminhava junto às margens,
sobre as pedras cobertas pelas águas rasas da beira da lagoa.
E as pedras brutas alisavam os seus pés
e seus pés nas pedras ficavam mais formosos, tão macios.
Oxum ia à lagoa sempre esperando um amor,
que viria um dia, espreitando, apreciar sua beleza.
Oxum caminhava nua nas pedras.
Caminhava nua, esperando pelo homem
que viria um dia espiar sua exuberância.
Oxum ia à lagoa brunir os seus indés
e na lagoa lavava seu punhal, seu ida.
ia banhar seu corpo arredondado, lavar os seus cabelos,
lixar seus pés nas rochas ásperas da ossá.
Oxum ia desnuda, pensando num amor a conquistar.

Tanto foi Oxum à ossá
que as pedras se gastaram com seu caminhar.
Viraram seixos rolados pelo tempo,
modelados e alisados sob os pés do orixá.
Aí um dia aproximou-se da lagoa um belo caçador
e Oxum logo por ele se enamorou.
Dentro da lagoa Oxum dançou suas danças,
dançou para o jovem caçador danças de amor, de sedução.
E o caçador deixou-se atrair por tanto encanto.
O caçador perdidamente enamorou-se de Oxum.
Não via o rosto dela, encoberto pela cascata de contas
que escondia sua face do olhar dos curiosos,
mas podia antecipar sua formosura.
E chamou Oxum à terra, ao prazer do amor.
Quando Oxum saía da água para entregar-se ao caçador,
as contas que lhe cobriam o rosto voaram com o vento
e a face de Oxum se descobriu para ele.
Terrível surpresa!
Oxum, a que gastara com os pés as pedras
de tanto caminhar para o zelo da beleza,
transformando pedras brutas em lisíssimos otás,
a que não sentira passar o tempo que foi necessário
para pedras brutas transformarem-se em seixos rolados,
Oxum, sim, Oxum estava velha.
Muito velha. Muito feia.
Olhos desbotados e sem viço
na face gasta e enrugada pelo tempo.
Era uma mulher muito velha e muito feia.
A mais feia e velha de todas as mulheres;
o caçador nem podia acreditar.
Não era a mulher bela que o extasiara.
Não era a mais doce das belezas que quisera arrebatar.
Assustado e ofendido pelo espetáculo,
ferido pela decepção, temeroso da feia visão,
gritou o caçador:
"É a mulher-pássaro, a velha feiticeira!
É a terrível mulher-pássaro, Iá Mi Oxorongá!”.
O caçador havia confundido Oxum envelhecida
com uma das temidas feiticeiras, as Iá Mi Oxorongá.
E mais clamava o ainda assustado caçador:
“Preciso ir à aldeia avisar a todos.
Que é aqui que mora então a terrível velha-mãe.
Aquela cujo nome já é ruim pronunciar!”.

Oxum estava pasma. Surpresa. Enfurecida.
O ardil do tempo fora mais do que funesto.
O tempo se esgotara e Oxum não percebera,
todo o tempo apurando sua beleza.
Todo o tempo banhando seus cabelos,
polindo seu punhal, lavando seus indés.
Oxum não podia deixar a aldeia saber desse segredo.
Que Oxum envelhecera. Oxum Ijimi. Velha e feia.
Oxum não podia deixar-se ir o caçador.
Oxum matou o caçador com seu idá
e depois lançou-se atormentada ao lago.
E nas águas da ossá Oxum se transformou num peixe.
Mas a memória de sua beleza ficou inscrita
em cada um dos seixos polidos por seus pés.
A beleza de oxum
ficou para sempre nos otás.

Quando as águas estão altas na lagoa,
Oxum, o peixe, nada para as bordas da ossá
e ali junto aos seus otás
rememora vaidosa sua beleza.


[Notas Bibliográficas e Comentários]

Transcrito do Livro Mitologia dos Orixás de Reginaldo Prandi, publicado pela Cia das Letras, pág 327-9. Originalmente encontrado em Reginaldo Prandi, pesquisa de campo, São Paulo, 1997. Seixos colhidos nas margens dos rios são usados nos assentamentos de Oxum.

Ossá [osa] – lagoa, lago, mar.
Indé [idè] – metal amarelo, pulseira.
Idá [ida] – espada, punhal.
Otá [ota] – pedra; seixo usado para assentar (representar) o orixá.

Axé a todos os nossos irmãos!
Deus é tudo acima de todas as coisas!
Olorum Colofé!

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